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Vítimas de si mesmo. E agora, quem pagará a conta?

30/08/2020

A Mente Que Mente

O título dessa reportagem de Márcia Tiburi, transcrita na forma de alguns trechos, me chamou muita atenção: “A CULPA É DE QUEM TEM CULPA”.

“Muitas vezes, ela é um sentimento de quem prefere a confortável posição de vítima, a assumir a responsabilidade num mundo hostil”.

A mente que mente propõe uma inversão total da ordem dos sentimentos e responsabilidades (não assumidas) produzindo uma espécie de dívida afetiva para com aqueles que são eleitos algozes de sua falência de afeto. Segundo Márcia Tiburi, numa de suas crônicas muito bem escritas: "por trás de toda vitimização há a culpa, muitas vezes trazida por séculos de submissão e sujeição, por aspectos culturais que colocavam a mulher em segundo ou em terceiro plano".

“Embora nossa cultura já viva certa democracia entre gêneros, a culpa continua sendo característica da subjetividade das mulheres muito mais do que dos homens. Dizer “sou mulher” é quase que o mesmo que dizer que “a culpa é minha”.

Já, na versão do alemão e filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), a culpa é um ressentimento que, em vez de ser lançado para o outro, é dirigido a si mesmo. Assim a culpa nasce de uma obrigação de fazer promessas que se transforma em incapacidade de cumpri-las, e daí passa a valer como dívida que, impagável, se volta contra quem a contrai.

Mas o ressentimento, segundo Márcia Tiburi, é uma espécie de peso morto que carregamos nos ombros sem que sirva a nada além de pesar.

A culpa aparece assim como um artifício infinito. Uma máquina poderosa de produzir dívidas inexistentes, pois se existissem realmente bastaria pagá-las ou pedir mais prazo, responsabilizando-se pelo que, de fato, se deve.

No entanto há certo prazer na culpa, justamente o da irresponsabilidade que afasta da convivência do desejo e coloca a pessoa no lugar de uma vítima dos desejos alheios:

1. Mulheres contemporâneas são herdeiras de uma vasta tradição simbólica que inclui mitos como Eva, a culpada da expulsão do Paraíso (que explica o ditado de que por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher).

2. A “Pandora”, a primeira mulher segundo a mitologia grega, que se assemelha à mãe onipotente culpada dos sofrimentos de seus filhos. Mas a coisa toda não para por aí...

3. Mesmo sem ser esposa ou mãe, uma mulher que deseja ser amante pode se sentir culpada em relação ao desamor do marido ou namorado por não ter, por exemplo, o corpo que ele deseja. Perguntar a si mesma, se ao contrário, “ele a agrada”, não é possível. Justamente porque aquele que se sente culpado precisa sempre pagar alguma coisa que não está devendo.

Mas o que – tão livres, tão independentes – as mulheres de hoje ainda podem dever? Numa linguagem psicanalítica “(...) por trás das armadilhas dos mitos está a ideia greco-medieval de que a mulher é um macho falido: a natureza, quando não tem força para fazer um homem, faz uma mulher”. Culpa de quem? Percebemos que a estrutura da culpa é paradoxal.

Nos tempos da liberdade feminina, uma mulher pode se sentir culpada de não querer ser esposa, mãe ou amante, ou por simplesmente ser bem sucedida. Como se seu sucesso a tornasse devedora de marido e filhos que muitas vezes ela não tem ou não quer.

Assim, a culpa pode aparecer ao assumir um desejo que não lhe foi autorizado. Acontece que a culpa surge justamente para eliminar o desejo. Está, assim, na contramão da responsabilidade.

A culpa, portanto, é apenas um sentimento de quem, não tendo porque carregá-lo, o faz por aceitar a posição de vítima que pode ser bem mais confortável do que a de quem se responsabiliza por seus desejos.

Artificial, a culpa aparece como algo que eu lanço sobre o outro para disfarçar aquilo de que eu mesmo não posso ser (ou não quero ser) responsável. O culpado culpa o outro e a si mesmo.

O culpado é assim um covarde que se disfarça de vítima e que encontra sua comunidade de culpados, deprimidos e entristecidos contra um mundo supostamente hostil. Fica mais fácil culpabilizar os outros do que responsabilizar-se. Mais fácil endividar o outro e a si mesmo do que pagar os custos da própria vida, pois viver no contexto da plenitude dá muito trabalho.

Culpados aqui e ali exigem que ajudemos a carregar seus fardos. Jogam seus pesos sobre os ombros próprios e o dos outros. Bem que podiam trocar tudo isso pelas asas do desejo que, em nós, estão prontas a se abrir, deixando tudo mais leve e permitindo voar e ver mais longe. Sabendo que o impulso para o voo vem da coragem e da responsabilização pelo voo.

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