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Virar adulto é como se perder da mãe no supermercado para sempre.

18/08/2020

Para ingressar no mundo adulto é preciso deixar a casa dos pais.

Histórias que revelam forte sentimento de lealdade ao sistema familiar podem trazer grande sofrimento e importante dificuldade no processo de individuação, limitando significativamente o desenvolvimento de competências e a consequente expansão do potencial de seus integrantes.

Entende-se por “compromisso de lealdade” a dinâmica familiar que mantêm o sistema homeostático, operando dentro de um pseudo-equilíbrio. Para manter o sistema homeostático, seus integrantes internalizam padrões mentais que propiciam a repetição de comportamentos adquiridos. É a chamada “genética do comportamento” que atua nesse padrão da repetição.

Não há como negar a força coercitiva que o próprio sistema familiar poderá impor aos seus membros através das crenças instituídas, dos legados e mandatos de família. Assim, seus integrantes vão introjetando - quase que por osmose - padrões comportamentais que podem limitar sua vida. Estes padrões têm por objetivo demarcar o território de atuação de cada um através dos papéis que lhes são atribuídos, sempre com vistas a manutenção do "status quo" da família (o famoso piloto automático).

Não raro o compromisso de lealdade estabelecido dentro do sistema familiar impõe regras de conduta (“condutas aceitáveis”) para que se mantenha preservado o “modus operandi” e consequentemente o sentimento de pertencimento ao grupo.

Para muitos, romper esses padrões significa se ver e se sentir excluído do grupo. O próprio sistema familiar aplica "punições" àqueles que tentam romper o padrão. Sentir-se fora, ou excluído do sistema, significa experimentar um forte sentimento de rejeição e abandono. Para aqueles que vivenciaram fortemente este sentimento devido a uma história importante de privação de maternagem, este processo torna-se ainda mais complexo e doloroso.

Encarar a sua condição de “orfandade” , provocada pela rejeição ou pelo rechaço, não é para qualquer um. Encarar seu desamparo emocional é vivenciar novamente a dor do não-vivido. Contudo, esta tem sido a saída mais inteligente para se romper o padrão da repetição, da "orfandade" e da vitimação.

O enfrentamento da realidade ainda consiste na resolução dos conflitos de origem.

A culpa do “sobrevivente” (em se tratando de um meio familiar precário, com escassos recursos internos) reside justamente aí, na ruptura desses padrões disfuncionais, os quais tem um único objetivo: manter viva e atuante as "identidades-funções" que foram construídas a partir dos papéis desempenhados em família. Identidades, estas, que se constroem nas bases da inversão da ordem dos papéis. À exemplo: filhos que assumem o “comando” da casa, dos pais, desempenhando uma função de cuidadores e mantenedores do lar, mesmo quando os pais possuem condições para administrar sua vida. A ordem natural, sabemos, é que os pais cuidem de seus filhos e não o inverso.

Para romper com a herança comportamental e finalmente resgatar o seu lugar e a sua verdadeira identidade no grupo familiar, o primeiro passo consiste em diferenciar-se do meio, diferenciar-se do todo. Não há como se individuar se não houver esta diferenciação que o levará ao reconhecimento da sua individualidade, do seu “eu-individuado”. Este reconhecimento traz a diferença entre o “eu e o tu”, demarcando um novo território no próprio sistema familiar. Este reconhecimento também traz validação a pessoa e fortalecimento de sua autoestima.

Frequentemente vejo pessoas buscando o seu espaço, seu "eu-diferenciado". Porém, o preço que pagam passa invariavelmente pela pressão que o próprio sistema familiar exerce através das manobras de manipulação e dos chamados “apelos emocionais”. Travando um verdadeiro duelo entre o desejo da individuação-independização e o medo da punição pelo sentimento de exclusão, as pessoas lutam pelo lugar que a elas foi outorgado através do direito adquirido pelo seu nascimento.

Apesar dos laços familiares servirem também para preservação da integridade física e psíquica das pessoas (assim deveria ser), todas, sem exceção, possuem um lugar que ultrapassa os limites territoriais estabelecidos pelo sistema familiar. Este lugar está inscrito na sociedade e no mundo.

Assim, diferenciar-se é tarefa para “gente grande”, pois exige desprendimento e desapego. Exige que saibamos das responsabilidades que pertencem tão somente a cada um de nós. Que todas as nossas escolhas, atitudes, comportamentos, sejam da nossa responsabilidade.

É importante destacar que há um misto de sentimentos que podem dificultar ou retardar o processo da individuação e da independização. A psicoterapia consiste em liberar o paciente deste compromisso de lealdade para com os seus familiares, por meio da aceitação das diferenças e do reconhecimento das condições de cada membro.

Muitas pessoas optam por viver de um modo mais restrito, em termos de “gozo”, de realização pessoal. Ainda assim são escolhas pautadas no desejo de cada um e, obviamente, nos ganhos secundários originados a partir dessas escolhas.

Outras, possuem o desejo de expandir o seu potencial de realização através do desenvolvimento contínuo de novas competências e isto requer diferenciação.

A diferença, em síntese, está em se permitir ser único, assumindo a sua condição, seja ela qual for.

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