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Um breve momento

11/06/2024

Natural de Caxias do Sul, descendente de Italianos que migraram para o RS, uma criança que imaginava o mundo colorido e acolhedor estava aberta para as experiências que a vida poderia lhe apresentar. Cheia de vida e com um coração gigante para interagir com o meio, essa mesma criança buscava “espaços seguros e criativos” para começar a reconhecer o que trazia consigo na sua bagagem existencial. Foi aí que encontrou um jardim. Um espaço verde, lindo, com arvores frutíferas e uma que se destacava. Era uma árvore gigante, ao menos aos olhos dessa criança e ao pé desta árvore. Foi nesta árvore que ela escalou. Subiu pelo seu tronco e escolheu um galho seguro para sentar-se. Neste galho a criança podia enxergar o mundo que imaginava. Sua mente criativa coloria esse mundo. Era um mundo repleto de paz, de amor em abundância e com uma natureza exuberante, infinita. Era um grande jardim onde as pessoas interagiam umas com as outras, mas todas estavam profundamente conectadas à natureza. Todos respiravam o ar que brotava das árvores, da terra, da grama, das flores. Havia borboletas de todas as cores e até beija-flor multicor. A criança via tudo isso de olhos fechados, em cima daquela árvore que mais parecia ser sua mãe, mostrando que o mundo era um lugar maravilhoso. Ainda de olhos fechados a criança avistava os pássaros e ouvia seus cantos. Era verão. E o calor do sol aquecia seu corpo e seu coração.
Ela adorava o sol. E sentia a força e a potência de vida que vinha dele. Uma conexão mágica. Neste jardim a criança encontrava outras crianças para brincar. Era o Fabi, a Ale e muitos anos depois o José Nelson. Três irmãos que a criança colorida conheceu. Eles eram filhos da “Tia Pila e do Tio Nelson”. Era assim que as crianças daquela época chamavam os seus vizinhos: de tio e tia. Os vizinhos eram uma espécie de oportunidade valiosa de experimentar outras culturas e buscar também aquilo que na família de origem não se encontrava. Tia Pila e Tio Nelson tinham uma ajudante, a Adiles. Adiles era uma espécie de mãe por adoção. Adiles cuidava daquela casa mágica, do jardim que tanto amava. Um dia, de tanto subir em árvores, a criança quebrou um galho repleto de figos. A Adiles correu com ela de cabo de vassoura, prometendo dar-lhe uma lição, para nunca mais quebrar galhos. A criança não fazia isso de propósito, estava apenas escalando as árvores. A natureza era seu lar.
Ela imaginava que tudo que precisava encontraria nesse jardim. Estimulada pelas obras de Monteiro Lobato, era fã de carteirinha, como se dizia, do Sítio do Pica-pau Amarelo. Especialmente da personagem Emília. A criança se identificava com a mente criativa, inventiva, da Emília. O jardim da casa do tio Nelson e da Tia Pila lembravam os episódios do Sítio. E a Tia Pila permitia que as crianças brincassem livremente. Tinha caixa de areia e até piscina de plástico. Um dia a criança chegou na casa e todas as outras crianças estavam na piscina. Envergonhada dizia que não tinha roupa de banho. Logo, Tia Pila deu um jeito. Ajudou a criança a entrar na piscina só de calcinha tranquilizando a mesma. Enquanto isso a Tia Pila preparava na cozinha cachorro-quente. Assim as tardes de verão eram vividas nesse espaço mágico. E também tinha as "bexiguinhas" que eram preenchidas de água e estouradas na brincadeira de pega-pega. A disputa era tão grande para chegar na melhor torneira para encher a bexiga que um certo dia a pia caiu e se espatifou. A criança, com medo de represália, foi explicar à Tia Pila o que teria acontecido. Com sua mente de Emília, logo disse:
-- Tia Pila, a gente estava enchendo as bexigas no tanque e de repente a pia ao lado caiu.
Tia Pila retrucou:
-- Ah, quer dizer que a pia caiu sozinha, de repente, sem ao menos ser tocada?
E a criança reforçou:
-- Verdade verdadeira. Foi o que aconteceu. 
Tia Pila sabendo que a criança vivia num lar de muita repressão, sorriu e disse:
-- Então vocês vão ter de encher as bexigas somente no tanque agora.
E assim os dias se passavam, nas aventuras e nas tentativas de conseguir um tempinho a mais na casa da Tia Pila. Às vezes a mãe da criança tinha de chama-la para o almoço. A única chinelada que levou de seu pai foi quando demorou para chegar para o almoço. Mas a criança que tinha uma mente criativa, tratou de fazer “greve de fome” na casa de seus pais. Sua mãe começou a se preocupar e então fazia pequenos “ranchos” (compra de alimentos) para que na casa da Tia Pila e do Tio Nelson ela pudesse se alimentar. Mas teria de voltar para sua casa na hora do almoço. Na casa da Tia Pila as crianças podiam comer até no sofá onde pulavam e as vezes esmagavam sem querer as bolachas que caiam de suas mãos. Imagina isso na casa dos pais da criança? Impossível!
Nesse breve momento onde a criança pode viver suas peripécias, roteirizando peças de teatro na garagem da casa de seus pais, levando as  crianças da escola para assistir as peças, ganhando até um pintinho na escola que tentou cuidar como se fosse seu bichinho de estimação até precisar doar para a sua Tia Maria, que anos depois teria virado um galo e assim foi parar na panela transformando- se em alimento. Foram poucas vezes que a criança pode brincar na casa de seus pais. Mas quando conseguia, era mágico. Escapava da rigidez de sua mãe que tinha TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), era “doida” por limpeza, e aí criava, inventava, trazia alegria para dentro daquela casa.
Um dia sua mãe adoeceu e precisou ser hospitalizada.  Então o que era mágico transformou-se em medo de perder sua mãe. A criança passou a morar um pouco em cada casa de seus parentes até sua mãe se recuperar. Ouvia as pessoas falando sobre a possibilidade de morte de sua mãe e quem poderia ficar com a criança para cuidar. A partir desse momento em diante todas as peripécias da criança foram atravessadas pelas demandas de sua mãe. Quase sempre sua mãe estava doente. Era queixosa e adorava frequentar uma farmácia de freiras que aplicavam injeções na mãe.  A criança era sempre levada com sua mãe e assim a via com muita dor. Era fibromialgia. Uma dor crônica. 
Quando raramente a mãe ficava bem, a criança aproveitava para brincar, inventando comidinhas no seu liquidificador de brinquedo, criando perfumes com as flores do jardim de enfeite da casa dos pais. Sim, era jardim de enfeite, não se podia pisar na grama a não ser para molhar as plantas. Mesmo assim a criança dava seu jeito de brincar.
Num momento breve de sua infância a criança pode brincar na praia, quando seu pai construiu uma casa para as férias de verão. Foram dias de muita alegria, mas todas as temporadas eram vividas nos intervalos entre as diversas idas de sua mãe aos postos de saúde aplicar injeções inclusive para a alergia que a mãe tinha da areia, do sol, da maresia do mar. A criança, com o tempo, percebeu que sua mãe tinha alergia até da alegria e da diversão das pessoas na praia. Chamamos isto de autismo, quando a pessoa evita o contato com outras e se sente melhor na sua casa, de preferência sem barulho, sem “zoeira”. A mãe desta criança gostava de ficar no seu quarto, com tudo fechado, às vezes no escuro enquanto era dia. Ela também tinha enxaquecas. Então, novamente a criança era levada pela mãe para essa "via sacra". Eram 3km a pé, até chegar no posto de saúde, na praia vizinha. E depois mais 3km a pé, de volta para a casa "magica" construída pelo seu pai. Nessa época a criança continuava vivendo seus "breves momentos" de alegria, diversão, invenção, fantasia e mar. Muitos banhos de mar. Seu pai foi quem ensinou a criança a mergulhar e a nadar. Foi ele que mostrou o colorido da vida e a possibilidade de boiar no mar e curtir as ondas menores. A criança, muito esperta, percebia que seu pai desejava mostrar-lhe um caminho leve de se trilhar a vida, que não precisava ficar emaranhada no sofrimento de sua mãe e na sua rigidez. Seu pai sempre dizia:
--Não faça onda, minha filha! Querendo dizer “não dê importância ao que não tem importância.  Não use lentes de aumento para os medos e a insegurança que cercava a criança toda vez que estava perto de sua mãe. O pai incentivava a autonomia na criança e desejava que ela "fosse ao mundo" quando pudesse. Ela sentia que seu pai a reconhecia na sua alma de borboleta, que o pai a via como um passarinho livre que poderia voar para onde quisesse. E assim esse pai foi instrumentalizando a criança para se tornar uma mulher autônoma, independente e capaz de gerir a sua própria vida. O que o pai não contava era que seriam décadas e mais décadas até a criança conseguir sair dos apelos e emaranhamentos de sua mãe. Foram muitas cirurgias e procedimentos invasivos que sua mãe passou e a criança foi treinada desde a sua tenra infância a "cuidar de sua mãe ". Muitos anos depois sua mãe e seu pai tiveram Alzheimer e a criança transformada num corpo adulto precisou ser a curadora deles, até a sua morte. 
Em algum lugar daquele corpo adulto uma criança cheia de alegria, colorida, inventiva habitava e aguardava por mais um breve momento para existir plenamente. E não é que esse dia chegou? Aos 52 anos de idade a criança pode voltar a protagonizar sua vida, agora não mais por um breve momento, mas para sempre enquanto viver! A borboleta conseguiu voar e chegar no seu mundo paraibano colorido, alegre, quentinho, cheio de vida e de mar. Exatamente como seu pai lhe mostrou.
 

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