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Tempos de Intolerância

13/08/2020

Segundo o professor e historiador Leandro Karnal, a etimologia latina da palavra tolerância remete a: “sofrer em silêncio”. A partir desta concepção a ideia da tolerância passou a ser vista como submissão. Somado a esta ideia temos a cultura do “macho alfa” que acha que é preciso não apenas ter opinião, mas impor esta opinião. Exatamente por se tratar desta interpretação, resolvi escrever sobre intolerância na contemporaneidade, usando os enfoques que Karnal apresenta dentro dessas duas formas de compreensão: a tolerância passiva e a tolerância ativa.

A tolerância passiva, que domina num determinado momento, significa o seguinte: “Não me importa que você seja lésbica, desde que não sente do meu lado”.

A tolerância ativa é aquela que diz: “só é possível viver em sociedade e só é bom porque existe a diversidade”. Então, eu não apenas digo que você é lésbica e eu não sou, mas eu acho isso uma das melhores coisas que jamais aconteceu na história, que você seja diferente de mim. A tolerância ativa proclama a diversidade como princípio.

E a intolerância na internet? É notório ver pessoas discutindo na internet, quase se engalfinhando, se não fossem protegidas pela tela do computador ou do celular. São extremistas nas suas opiniões e comentários, ultrapassando qualquer bom senso e até mesmo ofendendo a moral de quem está do outro lado trazendo uma opinião ou comentário contrário à percepção do interlocutor.

O professor Karnal traz uma compreensão muito interessante a este respeito:

“As pessoas não discutem, elas adjetivam. No momento em que elas dizem “petralha ou coxinha”, elas pararam e interromperam o fluxo racional. Negaram ao outro a capacidade de ser. No momento que eu lhe classifico com um adjetivo ou substantivo que se torna um insulto, eu tento colocá-lo numa caixinha para impedir o diálogo. E esta é a única capacidade que a pessoa tem, de colocá-lo numa caixinha”.

Penso que vivemos a relativização das ideias e comportamentos, uma significativa fragmentação do conhecimento. Então, na internet, qualquer opinião é válida, como se fosse um fragmento do conhecimento que não teria sequer sido posto à prova. Temos inúmeros exemplos que fundamentam esta percepção:

• Lemos as legendas, mas não abrimos o post ou o site que fundamenta (ou não) o enunciado.
• Quando nos dedicamos a ler todo o texto impresso em um site, que aparentemente mereceria nossa confiança pela credibilidade conquistada, não nos damos o trabalho de aprofundar a questão, buscando outras fontes de informação e de esclarecimento sobre a notícia veiculada. Continuamos com o fragmento escolhido, lançando nossa opinião sobre o assunto.

Assim é em todas as esferas, incluindo centros de formação, “disto e daquilo”. Já repararam na rapidez com que algumas ferramentas são usadas para ofertar o atual “conhecimento”?

Vivemos num mundo altamente apressado, mas não veloz, como bem diz Mário Sérgio Cortella, professor e filósofo:

Hoje confundimos muito velocidade com pressa. Pressa em fazer, pressa em se alimentar, pressa em conquistar, pressa na amizade, pressa na convivência, pressa nas relações familiares. Exemplo: quando se esquece do filho dentro do carro. Viver apressadamente não é viver velozmente. Velocidade é sinal de habilidade e competência. Pressa é sinal de desorganização ou despreparo. Um exemplo: eu quero que um cirurgião, quando vai me atender, que saiba fazer velozmente, mas que não o faça apressadamente. Hoje nós confundimos muito a pressa com velocidade. E isto acaba fazendo com que se perca um pouco o sentido das nossas coisas, da nossa vida, vivendo no módulo piloto automático.

Temos mais uma questão que se integra a este contexto da intolerância. Além da pressa em dar respostas imediatas e sem fundamento, que é o apelo para se viver o “aqui e agora”, ainda nos cobramos para viver no modulo “Carpe Diem”. Ou seja, agora é preciso viver com total plenitude no tempo presente. Há uma onda quase messiânica que diz “Carpe Diem”, quer dizer, “Aproveite o dia!” Mas é preciso cautela, pois há uma obsessão por viver o presente até o esgotamento. Exemplo: quando o filho chega à casa e logo sai. E o pai pergunta:

- Filho, para onde você vai?
- Pai, eu vou para a balada!
- Mas, filho, você não foi ontem?
- Pai, você não entende. Pode ser a última balada da minha vida!

Você fica olhando o menino com catorze anos de idade supondo que ele precisa viver o presente até o esgotamento, mas isto não é verdade. O presente não pode ser vivido somente ele, porque alguém que vive somente o presente acaba perdendo a história. Nós não somos a vida do passado, mas ela domina a nossa história. Claro que passado não é direção, mas é referência. O passado é necessário para você poder seguir.

Pierre Dac já dizia: “O futuro é o passado em preparação”. Então, qual será o nosso legado, qual será a nossa geração? Será aquela que vai cuidar da nossa cidade, dos nossos feitos? Ou será uma geração que usará o lema: “Cada um por si e Deus por todos?”.

De acordo com as reflexões do professor e filósofo Mário Sérgio Cortella, reportei-me às estatísticas de suicídio na adolescência e no adulto jovem. Será que este apelo para se viver “o hoje” como o único tempo de nossa vida, a única maneira de senti-la (e dar sentido a ela), não estaria levando nossos jovens a esgotar a vida em segundos? O suicídio não estaria ligado também a esta vida apressada, picotada em conhecimento, sem sentido e intolerante? Uma vida sem nenhuma frustração, sem dor, sem desprazer.

Afinal, o que nos dá a confirmação de que nossa vida não somente valeu a pena, mas a galinha inteira? O que nos move em direção à conclusão do nosso ciclo de vida?

Talvez seja o contrário de todos os apontamentos realizados nesta reflexão. O contrário da intolerância ao diferente, podendo aceitar com bom grado a diversidade e a dualidade da vida, pois é através dela que nossa sociedade pode amadurecer tornando-se verdadeiramente adulta e capaz de gerir suas necessidades, aprendendo a conviver na coletividade.

Talvez seja o contrário da pressa, a capacidade de abdicar de todo tipo de excesso, principalmente os excessos de conquistas puramente materiais, permanecendo numa vida mais simples e menos complicada, muito mais significativa, pois o principal combustível que nos move na vida são os vínculos que cultivamos e o sentido de pertencimento a este mundo enquanto pudermos viver nele.

Assim como Greg Mckeown, um dos criadores do curso Projetando a Vida Essencialmente, da Universidade Stanford, nos diz: “A sabedoria da vida consiste em eliminar o que não é essencial”. Ainda afirma:

O essencialismo não trata de fazer mais; trata de fazer as coisas certas. Também não é fazer menos. Mas é investir tempo e energia da forma mais sábia possível para dar sua contribuição máxima fazendo apenas o essencial.

Bert Helliger, o pai das Constelações Familiares, também traduziu um dos princípios que rege o equilíbrio nas relações interpessoais através do sentido de equidade. Ou seja, dar e receber precisam se equilibrar para que haja pertencimento, individuação e contribuição efetiva nas relações.

De tudo exposto, são muitos os questionamentos, há muito que se fazer para não perdermos o que há de mais belo neste mundo: a humanidade que ainda reside (e resiste!) em nós. A vida não pode ser apressada. A vida precisa ser sentida!

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