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Relacionamento conjugal parentalizado

24/08/2020

Muitos casais procuram ajuda por manifestarem conflitos na relação conjugal. Entende-se aqui, “relação conjugal”, a relação que se caracteriza pelo desejo manifestado numa união entre os pares, podendo ser homoafetiva ou não. A busca de auxílio nesta área resulta, muitas vezes, na interferência (declarada ou implícita) das figuras parentais antecessoras. É exatamente aí que reside a maior dificuldade apresentada por muitos casais que se sentem invadidos em sua privacidade e, com isso, não autorizados a viver plenamente a relação estabelecida.

Uma das possíveis causas é a qualidade do vínculo que se mantém com as famílias de origem, numa relação de dependência ou subserviência (sujeição). É quando os pais do casal, numa relação completamente desgastada ou disfuncional, mantêm seus filhos “aprisionados” ou a serviço deles. Em outras palavras, é quando os pais se utilizam de seus filhos para manter seu casamento. Ou, ainda, em alguns casos de separação ou viuvez, o cônjuge "elege" um dos filhos para ser o seu parceiro(a). O filho-parceiro perde sua identidade ou seu referencial na família, ganha "poderes" em contrapartida (ganhos secundários), mas perde seu lugar de filho, pois não se sente autorizado a fazer suas próprias escolhas. Antes de tudo vem sua família de origem, seu papel de "efeito tamponamento", alimentado pelo forte sentimento de responsabilidade pelo "cônjuge sobrevivente". No filme "Reflexos da Amizade" encontramos essa relação: uma mãe suicida e um filho-parceiro que cuida da mãe permanecendo acordado durante a noite para tentar evitar o suicídio da mãe, o qual revelaria a busca pelo parceiro "perdido"... Mais tarde este filho casa e constitui família, mas tem sérios problemas de vinculação.

Como não se trata de uma avenida de mão única, podemos também compreender que os filhos - nesta posição – buscam assegurar seus ganhos secundários. O “pagamento” ou o ganho secundário pode vir através da contínua busca do amor e do reconhecimento de sua função na tríade estabelecida, além de outros "ganhos". Na verdade, permanecem "filhos" tentando ocupar um lugar na família para garantir o sentimento de pertencimento e inclusão, visto que este papel acaba por destituí-los de seu lugar . Entretanto, a frustração por não conseguir tal feito torna-se inevitável e a dinâmica disfuncional se mantém na tentativa desesperada de fazer parte do todo. São filhos que não conseguem ficar um dia sequer sem falar com seus pais, muitas vezes passando o relatório do que fizeram ou deixaram de fazer no seu casamento ou em outras áreas de sua vida. Muitos entregam seus filhos aos cuidados dos avós (seus pais), em busca do amor e da pertença que não obtiveram nesta relação triangulada. Ainda pedem conselhos e orientações para situações que somente eles poderiam resolver.

Frequentemente me deparo com filhos que vivenciaram fortemente o sentimento de abandono e a falta de validação de seus pais, causando-lhes sérios problemas na autoestima. A armadilha aqui é colocar-se a serviço da neurose conjugal de seus pais na tentativa de reparar a rejeição ou o abandono, acreditando obter a atenção, o amor e o reconhecimento através do desempenho demonstrados na tríade. Mal sabem que eles próprios contraíram uma dívida afetiva com seus pais e através deste papel tentam saldar essa dívida. Uma dívida impagável.

Um filho que não é preservado em sua condição ou em sua posição na família, que não é reconhecido como tal, experimenta forte sentimento de abandono e passa a se relacionar com o mundo de uma maneira submissa e, portanto, disfuncional.

O fato é que tentar constituir uma nova família mantendo-se "preso" a outra, implica na dificuldade de entregar-se na relação que pretende dar continuidade. É preciso deixar de ser filho(a) para se tornar um adulto capaz de fazer escolhas e assumir suas consequências. É preciso se divorciar das figuras parentais para poder assumir uma relação conjugal. Para que este divórcio possa acontecer, os filhos precisam entrar em contato com a sua realidade, enxergando suas famílias e as relações mantidas como são de fato e não como gostariam que fossem. Deixar as ilusões e encarar a realidade. Uma tarefa árdua, mas necessária: enxergar os pais reais - e não os idealizados - também os levará a um sofrimento emocional por perceberem a trama a qual se envolveram. Mas crescer dói e é necessário para que se estabeleçam relações funcionais.

Para “divorciarem-se” das famílias de origem é necessário entrar em contato com o próprio abandono que sofreram e o lugar que pouquíssimas vezes ocuparam na família de origem. Dizer não a esses papéis de sujeição e de dependência emocional também pode trazer alívio e uma nova possibilidade de se relacionar bem consigo mesmo e com o outro. Do contrário, esses filhos permanecerão alvo de manipulações e chantagens emocionais de seus pais, e de outras pessoas, mesmo que de modo inconsciente.

Há, portanto, apenas uma saída: enxergar sua verdadeira história familiar e seu lugar na família de origem, fazendo a escolha mais adequada que diz respeito aos seus desejos e as suas reais necessidades (em sua vida). Somente desta maneira você conseguirá assegurar seu Projeto de Vida que poderá ser diferente do projeto de seus pais. Chamamos a isto de "individuação" (tornar-se um "SER" indivisível e incorruptível).

Contudo, não há nenhuma necessidade de "abandonar os laços familiares" (exceto em alguns casos). Não se trata de ruptura de vínculo. Isto significaria cair na mesma armadilha. É necessário, contudo, olhar para a sua vida e entender que seus pais já fizeram as suas escolhas e seu destino está traçado pelas escolhas que eles fizeram. Que esta é a história de vida conjugal deles (uma escolha deles, mesmo que vivam em pé-de-guerra). Você não precisa fazer a mesma escolha de seus pais para demonstrar amor e lealdade cega a eles. Deixa a história de seus pais com eles! Você também tem o direito de fazer as suas próprias escolhas e assumir suas consequências.

Para constituir uma família é preciso ter dois adultos capazes de administrar bem a sua própria vida para poder gerenciar a vida conjugal. Dois não significa um. Para existir um casal é necessário duas pessoas adultas, autônomas, capazes de dar conta de si mesmas para poder dar conta de uma união, de uma relação conjugal ou de uma sociedade afetiva, uma família. Tarefa que pertence ao mundo dos adultos.

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