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Partir, andar...

02/09/2020

Partir, andar... Eis que chega essa velha hora!

Dar-se conta da finitude, do ciclo de vida que vai se cumprindo, não é tarefa fácil. A ampulheta deflagra a realidade anunciando o avanço do tempo. E a chegada de um novo tempo. É hora de entrar em campo para cumprir o ciclo de vida. Com sorte e responsabilidade, quem sabe, prorrogaremos a finitude.

Fato: desconhecemos o futuro, mas podemos construir nosso presente, a cada dia, a cada momento. Temos apenas o presente e somos o único ser vivo que sabe que um dia irá morrer, aumentando ainda mais nossa responsabilidade sobre nossa trajetória.

Amigos... Ah, os amigos! Os bons amigos. Um amigo experiente e aberto ao novo e às “lições da vida” pode ser tremendamente terapêutico. Temos a oportunidade de realizarmos essa caminhada na companhia dos nossos afetos, testemunhas da nossa trajetória e da nossa existência. E nas trocas que fizemos, o apoio mútuo, o aprendizado, o despertar das consciências vão produzindo reflexões, insights e um olhar voltado para dentro para reconhecer melhor o que está a nossa volta. Vínculos significativos que podem ser conquistados formando os elos que compõem a nossa Vida. Assim, tornamos-nos cada vez mais responsáveis.

A famosa frase de Antoine de Saint-Exupéry, “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Confirma que somos responsáveis “por aquilo” que cativamos. Por aquilo que também projetamos no outro, por nossas idealizações, expectativas e frustrações. Pelos equívocos produzidos por nossa mente quando nossa criança aparece dentro de nós. De tudo, somos responsáveis por "aquilo que cativamos". Eu acrescentaria: por aquilo que cultivamos.

Mas chega uma hora que é hora de partir, de andar, de seguir em frente, como afirma esse poema de Fernando Teixeira de Andrade:

“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.

Ficamos à margem de nós mesmos quando recuamos, quando seguramos o passado e cultivamos os nossos traumas, os nossos equívocos e as nossas defesas primárias. Quando não encaramos o medo, quando não o reconhecemos, e ele se potencializa até concluirmos a tarefa, até tornarmo-nos lúcidos o suficiente. Ou seja, conscientes dos nossos atos. É verdade que é preciso “recordar e repetir para elaborar”, como dizia Sigmund Freud, o pai da psicanálise. É preciso tornar consciente as nossas repetições e elaborar nossos conflitos partindo para o segundo tempo do jogo, partindo para a maturidade e a sabedoria.

Tenho alguns bons amigos e participo de alguns grupos. Hoje foi um dia muito especial porque esta crônica foi surgindo a partir de uma reflexão sobre “arrastar nossos conflitos primários” e levá-los, às vezes, para a nossa sepultura. Uma amiga me fez pensar nas situações em que as pessoas permanecem no CTI, por vezes conscientes, mas cheias de “tubos e outros procedimentos”. Sem a possibilidade de falar, de pedir perdão, de perdoar, de se despedir e desapegar-se rumo ao final do campeonato. Não deve ser fácil abandonar as chuteiras e “se aposentar” desse mundo. As lágrimas escorrendo pelo rosto, a vontade de falar e não conseguir. Imaginar, nessa hora, que alguém consiga traduzir suas emoções e levar esse perdão àqueles que a pessoa desejaria pedir a sua compaixão e a reparação do vínculo. É angustiante só imaginar a situação.

Eu fiquei refletindo sobre isso e imaginando se é preciso chegar a esse ponto para “entregar os pontos” e parar de se defender. E dizer, finalmente: “Filho eu te amo, eu sempre te amei”. E estender esse sentimento a todos os afetos. Ou, então, dizer: “Eu sinto muito, eu nunca te amei da maneira como você desejava”. Também para dizer as melhores coisas que durante os anos de existência nunca foram ditas. Por que deixar para o final? Como se fosse uma novela sendo interpretada e somente no “grand finale”, o momento tão aguardado, as cenas decisivas. Por que na saída, quando não há mais tempo para ficar? Por que na hora que o juiz apita o término do jogo? Por que tamanha armadura?

A resposta que sobreveio: para se defender da criança que nunca se reconheceu num corpo adulto. A criança traumatizada que não cresceu emocionalmente, que não pode, portanto, sentir-se suficientemente segura para poder se reconciliar com as suas sombras, com o seu passado. Mas, por que não comunicar a essa criança que a partir da vida adulta você tomaria conta dela e não delegaria essa responsabilidade para mais ninguém?! Por quê? Por que cultivar essas defesas infantis? Nesta pandemia, do Covid-19, não temos mais tempo para arrastar mágoas e dissabores.

Em reconhecimento e agradecimento ao belíssimo trabalho desenvolvido por Gestalt-Terapeutas e por terapeutas da linha comportamental, eu substituo os “porquê” para os “para quê”. Para que serve esse apego? Cultuando a dor, o sofrimento, os traumas, vão carregando a cruz e a culpa. E também culpabilizando os outros, os eventos, a vida, numa eterna ambivalência. Dor e culpa, muitas vezes sendo projetados nas outras pessoas que nem fizeram parte do seu passado e nunca farão parte do seu presente com tamanho rancor e amargura sendo cultivados em seu coração.

Para quê?

Desapego é a palavra! Um dia a areia da ampulheta acaba, um dia as luzes se apagam. Mas não precisamos esperar esse momento para expressar o que sentimos, para nos libertarmos de sentimentos que já não pertencem ao presente.

Torne sua vida um presente! O que temos (o real) é o presente. Passado já passou e futuro não existe. O que temos é a dádiva do presente e as pessoas que testemunham a nossa existência. São os vínculos que formamos e cultivamos. O resto são ilusões da mente, produto das nossas idealizações, medos e fantasias.

A vida é breve, meu amigo(a)! Muito breve... Logo, partiremos.

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