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O que é ser um homem de bem?

06/03/2022

Em outro artigo publicado, intitulado “Compromisso de Lealdade”, falamos da aliança firmada com a dinâmica familiar de origem. Nossa sociedade também “funciona” de modo semelhante ao estabelecer regras de conduta por meio de padrões comportamentais vigentes. Não me refiro às leis que servem para manter nossa segurança e a organização para uma vida em sociedade. Refiro-me às regras de comportamento padronizado, as quais têm por objetivo reforçar um sentimento de pertencimento à tribo, um sentimento de inclusão. Essa ordem gera, portanto, necessidade permanente de adaptação ao meio, mesmo que este meio o oprima.

Mas ao descobrirmos uma rota alternativa, um caminho que assegura a preservação e o respeito a nossa individualidade, eis que surge uma dúvida cruel e um questionamento comum aos que se intitulam “homens de bem”:

- “Quero ser um “homem de bem”, não quero passar por cima de ninguém. Não quero me tornar uma pessoa egoísta ou individualista, sem considerar o “outro”, apenas porque descobri ser capaz de atender aos meus próprios desejos e necessidades”.

Quando as pessoas se individuam, tornam-se invariavelmente autoras da sua própria vida. Ganham exponencialmente autonomia para fazer suas próprias escolhas e independente da opinião alheia. Romper padrões mentais e comportamentais que servem apenas para manter um sistema homeostático (pseudoequilibrado) não é nada fácil! Esse "pseudoequilíbrio" serve apenas para manter a fantasia onipotente de pertencimento e inclusão, podendo trazer alívio num primeiro momento, mas em seguida um sentimento de culpa pela dívida afetiva gerada consigo mesmo. E isso gera um círculo vicioso onde a principal fonte geradora está assentada na dinâmica da dominação-submissão. Neste sentido há uma retroalimentação da toxicidade presente na relação abusiva.

A individuação e a independização é uma grande aquisição que deve ser feita para que se conquiste a capacidade de administrar e gerir o seu "projeto de vida", decidindo qual o caminho a trilhar e de que modo percorrer este caminho.

Certa vez ouvi de um psicoterapeuta uma “sentença” que até hoje reverbera dentro de mim:

Nascemos sozinhos e morreremos sozinhos. É ilusão pensarmos que a sujeição ou a submissão nos livrará desta condição!”

Mas, afinal, o que é ser um “homem de bem”? Tenho tido o privilégio de atender pessoas que chegam neste estágio de consciência e de individuação. Algumas pessoas sentem-se culpadas por deixarem de repetir os padrões pré-estabelecidos. A culpa revela o medo de perder as pessoas que amam por mudarem de atitude frente a sua vida. A culpa produz uma sensação de inadequação. Muitos acreditam ferir os que amam por simplesmente usarem o seu livre-arbítrio e diferenciarem-se do sistema.

É bem verdade que todos esses sentimentos servem para que se mantenha o "status-quo" da posição adotada anteriormente e consequentemente seus ganhos secundários.

Pois bem, ser um “homem de bem” não é fazer o que os outros desejam ou aprovam! Para ser um “homem de bem” não é, pois, necessário adotar nenhuma “cartilha de bom comportamento” que dita as normas que regulam sua vontade, seu querer e sua vida. Tem até manual de instrução que promete a conquista da “Terra Prometida”, da “Felicidade Eterna” e caso haja descumprimento das regras de conduta você cairá numa espécie de limbo ou visitará o breu.

Bem, princípios éticos e morais a grande maioria das pessoas tem em sua própria consciência, pois vivemos em sociedade onde as leis garantem o cumprimento destes princípios. Portanto, a sua consciência é de fato seu guia, seu próprio "manual de conduta".

Tomar o seu lugar no mundo assumindo o direito de escolha que lhe pertence não é ser prepotente ou arrogante, muito menos egoísta. Acreditar que você se tornaria um homem sem compaixão ou sentimentos em relação aos outros apenas por realizar seus desejos, sua vontade, já revela que a lealdade ao sistema ou as pessoas que o cercam ainda é mais forte que a capacidade de individuar-se. E, mais, que a aliança firmada tem um único propósito: manter-se vítima da circunstância para justificar sua covardia diante da condução da sua própria vida.

Abandonar toda forma de controle ou “enquadramento” não significa abandonar as pessoas que se ama, nem passar por cima delas, mas respeitar a si mesmo em sua individualidade, mesmo fazendo parte deste ou daquele contexto de vida. Não se pode assumir a responsabilidade pelos sentimentos do outro apenas porque suas próprias escolhas são diferentes ou porque fazem parte de um projeto de vida único e intransferível.

Portanto, ser um “homem de bem” (uma pessoa de bem) é ser um homem realizado, feliz com os seus propósitos, com a sua vida e com o modo como a conduz.

Certo dia perguntei a um paciente quando se questionava a respeito de suas conquistas:

- Então, seguindo o que você tem se questionado, a respeito de suas atitudes, o que o “Papai do Céu” diria a você quando estivesse na sua presença? Estava me referindo ao “Papai do Céu”, pois esta foi a “deixa” do paciente.

Assim, o paciente respondeu:

- Ele me cobraria pelos erros que cometi!

Obviamente que a culpa que o paciente sentia por ter conquistado uma posição de liderança em sua vida, muito diferente das escolhas da sua família de origem ou dos seus antepassados, resultou na condenação de si mesmo, afirmando que o “Papai do Céu” o rejeitaria por atitudes “erradas” ou “pecaminosas”. Foi, então, que ao indagá-lo mais a fundo sobre o investimento que Ele, o “Papai do Céu”, teria feito dando-lhe a vida e todos os recursos que nela se encontram, conseguiu chegar a conclusão de que o único retorno que Ele cobraria seria a sua própria felicidade, o seu bem-estar, assim como se espera de um filho quando um pai investe em seus estudos e em seu desenvolvimento pessoal.

Talvez a Vida seja um grande investidor e queira um único retorno de todos nós: a nossa felicidade, a nossa realização, a nossa paz e, obviamente, o melhor aproveitamento do investimento realizado por Ela.

Mas as crenças instituídas em nossa sociedade, em nossa cultura, fazem com que a culpa seja uma constante em nossas vidas: culpa pelo gozo, pela realização, pelo sucesso! Culpa, culpa, culpa! Minha máxima culpa! Há uma série de dogmas, pré-conceitos e mitos em torno do "gozo" (do princípio do prazer), como se fosse impossível conquistá-lo de modo libertador. Não nos ensinaram a celebrar e compartilhar nossas conquistas, ensinaram-nos a doar todas elas para sermos “homens de bem” e para, então, conquistarmos o “Reino do Céu”.

Desejo a vocês a lealdade aos seus propósitos de vida! Que a autenticidade e a liberdade de expressão nunca lhes faltem.

Como diz a jornalista Márcia Tiburi: “A culpa é de quem tem culpa. Ela é um sentimento de quem prefere a confortável posição de vítima do que assumir a responsabilidade num mundo hostil. Bem que podiam trocar tudo isso (as dívidas afetivas geradas pela culpa e pela vitimização) pelas asas do desejo que, em nós, estão prontas a se abrir, deixando tudo mais leve e permitindo voar e ver mais longe, sabendo que o impulso para o voo vem da coragem e da responsabilidade por nossas escolhas.

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