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O Preço da liberdade

25/01/2022

É madrugada em Caxias do Sul e o calor descomunal desta vez me pegou em cheio. É impossível dormir. Aguardando conserto, o ar condicionado estacionado no tempo permitiu que minha mente flutuasse por algumas horas. E neste exato momento despertei o desejo da escrita. A escrita que me auxilia a organizar os pensamentos que seguem tomando conta da madrugada.

Meu pai, diagnosticado com o Mal de Alzheimer há mais de 10 anos, veio morar comigo por uma temporada e acabou ficando em definitivo. Antes de dormir sempre assisto a um filme ou série com o meu pai. Creio que a seleção de filmes e séries nunca é aleatória. O inconsciente dá um jeitinho de encontrar o filme que vai promover alguma reflexão geralmente fundamentada nas nossas vivências.

Desta vez foi “Amelia”, um filme que me pegou em cheio! Amelia Earhart (1897 - 1937) foi pioneira norte-americana na aviação dos Estados Unidos. Foi defensora dos direitos das mulheres e a primeira mulher a pilotar sozinha pelo oceano Atlântico. Recebeu a condecoração “The Distinguished Flying Cross” por realizar o feito. Escreveu e publicou suas aventuras na aviação com o seu editor-chefe-marido. Tudo na vida de Amelia não era banal nem tampouco efêmero. Quando perguntada sobre por que voar, Amelia respondia: “Quero ser livre”. Eis o embrulho no meu estômago e o despertar nesta madrugada. Eu já havia assistido este filme em outros momentos da minha vida, há muitos anos, noutra fase. Talvez num dos momentos de busca incessante por uma liberdade idealizada e humanamente intangível. Amelia sacode a nossa caixa de sonhos e paixões. É uma mulher além do seu tempo. É uma mulher que marca sua história e a história das mulheres de todas as gerações, as que vieram antes e as que vieram depois. Amelia era a pura paixão e o puro desejo. Vivia regida pelo “princípio do prazer”. A palavra “limite” parece não ter existido no seu vocabulário. Revolucionou não somente a aviação por ter sido a primeira pilota a atravessar o oceano e a primeira a tirar o brevê de piloto, mas fundamentalmente por ter compartilhado seus feitos e status à favor de importantes obras sociais e essencialmente para o avanço das mulheres no campo antes conhecido como exclusivamente pertencente aos homens.

Em meio ao calor incomum que estamos vivenciando na região Sul do País e as “olhadinhas” no pai para ver se está dormindo bem ou precisando de algum auxílio, fui atravessada novamente pela biografia de Amelia Earhart. A busca obsessiva por uma liberdade nunca antes conquistada na história da humanidade fez despertar meus desejos mais profundos. O Id despertou nesta madrugada trazendo alguns “delírios” de uma vida sonhada e creditada para a liberdade que Amelia apontou lá em 1930. Não vou dar “spoiler alert” do filme, mas posso antecipar que o final é mais que surpreendente. É um soco na boca do estômago.

A vida continua sendo, em muitos momentos, uma caixa de surpresas. Eu que me identifiquei com Amelia no “dedinho mínimo” do seu pé, achando que tinha trilhado uma vida completamente independente e desprovida de apegos, me pego assumindo uma responsabilidade afetiva agigantada por assessorar e acompanhar meu pai no encerramento do seu ciclo de vida lidando com uma doença completamente imprevisível. Os dias aqui se alternam entre consciência e inconsciência. Tudo que eu sempre evitei na minha vida, embora tivesse estudado para isto. Evitei a “inconsciência” como se pudesse ter esse controle. Como se pudesse controlar o próprio inconsciente, permitindo ou interditando conteúdos numa fantasia onipotente que me protegeria da loucura. O Alzheimer é, em si, a loucura vivida na sua plenitude. É o romper da consciência ultrapassando o limite do aqui-e-agora. É a perda de controle sobre todas as instâncias da mente humana, uma doença neurológica degenerativa e devastadora. É quando o motor do carro dá sinais de que não haverá mais a possibilidade de reparos e em algum momento ele irá parar de funcionar. Mas no caso do carro, ele pode ir direto para o ferro velho. O corpo humano não. Clinicamente poderá se manter vivo mesmo que boa parte do motor (cérebro) já não funcione bem na conexão com a realidade do momento.

Voltando ao filme, Amélia viveu sua vida conectada ao seu desejo, ao seu sonho de menina rebelde e sem limites (sem fronteiras). Nem o céu era o limite para Amelia. Ela queria ultrapassar a barreira do som. Pertence a primeiríssima classe inexistente neste planeta: a classe dos libertos. Nada e ninguém, nem mesmo seu grande amor a “segurou”. Nenhum apego, a não ser seguir na direção do seu desejo. O soco na boca do estômago veio para mim quando me peguei pensando na parte da minha consciência que desejava o mesmo, não na aviação, mas na “carreira solo”. Seguir na vida sem apegos. Nesta hora comecei a pensar na psicanalista Maria Lucia Homem quando fala sobre os delírios da liberdade. Sobre a liberdade sonhada num mundo onde estamos presos não apenas pelos afetos e apegos, mas pela própria finitude. Um dia tudo acaba, inclusive os sonhos.

Mas, e a liberdade?

Amélia, em sua biografia, revela que essas paixões têm fim. Que viver intensamente a paixão pode ser fatal. Ela pode terminar um dia. Que nossos sonhos e idealizações são atravessados pela dureza da realidade que muda o curso da nossa vida, muda o plano de voos, a rota, o itinerário. Planejamos uma rota e de repente estamos noutra.

Me pergunto neste exato momento: onde vai dar essa rota que peguei? Por quanto tempo terei minha rotina fantasiosamente planejada e ordenada? Quanto tempo terei meu pai reconhecendo a si próprio e a mim? Como será quando “ele enlouquecer de vez”? Quando perderá totalmente a consciência de seus atos? E como irei lidar com isso? São perguntas que me colocam no meu devido lugar: sou um pontinho minúsculo nestes multiversos e não controlo nada, embora viva em busca desse controle. A vida é paradoxal. Sabemos que não temos controle sobre ela, mas planejamos nossos dias, nossos meses e anos, como se tivéssemos plena certeza do vôo e seu destino.

Por fim, e já me desculpando pelo texto longo, aviso aos navegantes que o sono voltou e que é hora de dormir, pois a escrita já cumpriu seu papel.

Boa noite!

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