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Não nascemos mulher, nos tornamos mulher.

10/08/2020

Em alusão ao que Simone de Beauvoir afirmara na década de 70: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Uma ativista política, encampando a missão do feminismo de sua época, escritora, filósofa-existencialista, feminista por essência e excelência, Simone não viveu tempo suficiente para presenciar as principais mudanças que tanto imprimira nos seus escritos e nas incursões pela liberdade da mulher. Dizia ter consciência de que ao menos umas quatro gerações seriam necessárias para que tal mudança ocorresse.

Pois bem, chegávamos em 2018 e às vésperas de uma eleição para Presidência da República em nosso País, no Brasil, esse mesmo tema voltava com toda força a ser debatido. Simone de Beauvoir morreu em 1986, aos 78 anos de idade, e deve ter se contorcido no túmulo por conta deste movimento discursivo que agora insinua um retrocesso ao que tanto fez para que todas nós, mulheres, as que vieram depois das principais lutas feministas, pudéssemos usufruir ou ao menos não mais ter a preocupação em consolidar direitos que já deveriam ter sido conquistados.

Em parte conquistamos alguns direitos, com muita luta, mas não conquistamos, de fato, o respeito da sociedade como um todo. O desrespeito é tamanho que uma grande parte das mulheres brasileiras identificou-se com um discurso maniqueísta e preconceituoso de um dos candidatos à Presidência da República que em tantas falas bizarras para nossa época, citava a que causou asco em muitas mulheres:

“Tive quatro filhos, na quinta fraquejei e veio uma mulher”. Fala de Jair Messias Bolsonaro. Na época, candidato. Infelizmente, hoje, o Presidente da República. Detalhe: em plena pandemia do Covid-19, sem nenhuma empatia pelos mais de 100 mil mortos em 2020 e mais de quatro meses sem um Ministro da Saúde. Entre tantas outras atrocidades que vem cometendo em nosso País, desde a sua eleição.

Como se não bastasse, esse mesmo candidato na época, repetia em meio ao seu discurso político e em toda sua campanha, que a mulher onera muito às organizações por conta da licença-maternidade, depois, por adoecimento dos filhos ou demais necessidades pessoais, afirmando que, por esta e por outras diferenças de gênero, as mulheres devem ter uma remuneração menor do que a dos homens que trabalham e produzem muito mais do que elas. Ouvimos isto em 2018! Pasme!

Simone de Beauvoir, entre tantas outras pesquisadoras e grandes pensadoras da época, incluindo homens que também apoiavam essa luta, todos, sem exceção, devem estar revirando-se nas suas tumbas e pensando se valeu mesmo a pena viver uma vida inteira construindo importantes teorias e realizando vários estudos, ou seja, pavimentando a estrada para que nós, mulheres da atualidade, pudéssemos dar continuidade a esses frutos. Mas, ao contrário, parece que o movimento arcaico e retrógrado de nossa época sugere um embrutecimento e empobrecimento intelectual e afetivo, a tal ponto que a volta aos tempos da Idade Média parece atrair uma legião de fãs deste candidato, da mesma forma que os Estados Unidos elegeu Donald Trump, um ditador da extrema direita.

Particularmente, e por ser uma pensadora otimista e incorrigível, penso que neste vasto inconsciente coletivo, que abriga a história da humanidade desde os primórdios, ainda possuímos certa dificuldade para expressarmos-nos livremente, para transitar livremente numa sociedade que ainda carrega o machismo e um papel clichê que reedita o patriarcado dos velhos tempos. Sim, também somos co-responsáveis por este movimento de retrocesso que eu prefiro chamar de reedição das nossas lutas para que não esqueçamos jamais de quem fomos e de quem somos. Talvez tivéssemos nos acomodado novamente, pois, segundo Simone de Beauvoir: “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplice entre os próprios oprimidos”. Haja visto a legião de fiéis que ajudaram a eleger este presidente exatamente pelas falas misóginas e homofóbicas proferidas sem nenhum senso ético ou pudor.

Assim como Jean Paul Sartre, escritor e filósofo existencialista, da geração de Simone de Beauvoir, afirmara: “O mal só pode ser vencido por outro mal”. Quero crer que a chegada de Jair Messias Bolsonaro faça parte deste acorde. Que ele espelhe e espalhe o que existe ainda em nós como crenças e preconceitos limitadores para nossa vida e para nossa evolução. Que suas falas que engrandecem torturadores da época da Ditadura no Brasil, o armamento da população, a discriminação dos LGBTis, o extermínio de mais de 30 mil pessoas para limpar o “mal” do nosso País (fala genocida que utilizava em campanha eleitoral), a redução da remuneração das mulheres reforçando a diferença de gênero, a discriminação racial e cultural (negros e índios), entre outras “propostas” indecentes que contrariam todas as lutas das ditas minorias, que tudo isso represente esse mal que será extirpado de dentro de nós.

O maniqueísmo que está impresso na nossa cultura e que carrega toda forma de preconceito, medo e exclusão, que seja visto neste representante e em nós mesmos, para que a reforma íntima seja feita o mais rápido possível, antes que nossa sociedade volte a viver nos moldes do regime ditatorial dominante.

Que “Deus” (nossa consciência) nos ajude e nos liberte da nossa própria ignorância e primitividade, das nossas sombras. Que em algum momento de nossas vidas, todas as mulheres que saírem às ruas novamente para protestar contra a opressão, representem o ponto final da acomodação ou da sujeição à ditadores e patriarcados. Sejamos livres, pois este é o nosso destino!

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