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Marcas do Abuso Infantil na Vida Adulta

24/05/2023

A vítima do abuso infantil geralmente carrega um misto de sentimentos na fase adulta. Alguns são evidenciados pela sua predominância. A culpa é um deles. Ela pode estar em evidência por se tratar de um mecanismo de sobrevivência psíquica. Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, desenvolveu a teoria da sexualidade humana colocando em destaque as estruturas psíquicas que se fundam no entorno dessa dinâmica. Portanto, onde há culpa há sempre um neurótico se indagando, se perguntando, se questionando, sentindo medo, raiva, tristeza por não conseguir decifrar suas angústias. Ou seja, o neurótico carrega a dúvida sobre as escolhas e a forma como lida com elas. O perverso e o psicopata não carregam a dúvida sobre seus atos, eles têm convicção, certeza do que fazem e sempre colocam a culpa num terceiro a fim de atingir seu propósito que na maioria das vezes é a manipulação e a barganha.
Quero me deter na fala do neurótico e seus sentimentos. O misto de culpa, medo, raiva, tristeza são vivenciados nas relações adultas e fazem parte das marcas do abuso infantil. Toda vítima de abuso é, em primeira instância, um neurótico que não consegue desvendar a trama, quero dizer, não consegue estabelecer uma lógica para os abusos sofridos e por não encontrar a resposta para seus questionamentos acaba por depositar a responsabilidade em si mesmo. Uma manobra da mente para tentar ser o protagonista, aquele que domina o cenário psíquico do abuso sofrido. É a luta do ego tentando equalizar as pulsões de vida e de morte, além disso é a luta do ego para manter as idealizações infantis como meio de proteção psíquica. É uma luta psíquica toda vez que a vítima se responsabiliza pela agressão e pelo agressor. Porquanto, é uma luta inglória. É uma tentativa desesperada de controle e domínio sobre o abuso sofrido. É uma manobra da mente que o coloca fantasiosamente em uma segunda cena de abuso, a qual ele próprio tenta controlar. 
Já vimos vários casos da vítima absolver publicamente seu abusador. A famosa “Síndrome de Estocolmo” (quando a vítima de agressão, sequestro ou abuso desenvolve uma ligação sentimental ou empatia por seu aproveitador). Em outros casos a vítima permanece anos a fio convivendo com o agressor. 
Casos de repetidas formas de violência também podem ser vividos no casamento ou em relações de longa duração. Infelizmente algumas pessoas acabam sendo assassinadas pela necessidade narcísica de manter as ilusões por meio das idealizações. Imaginemos aqui um pai e uma mãe abusadora em que os filhos, em grande parte, escolhem uma das figuras para mantê-la no plano da fantasia idealística. A necessidade de construir uma fantasia onipotente que protegeria a vítima de sua condição de total abandono faz com que a figura parental seja completamente idealizada. A criança sente-se inadequada, faltante, e procura compensar as agressões acreditando que não é boa o suficiente para merecer o amor de seus pais que a corrigem com seus atos abusivos. Muitos vivem essa fantasia por toda a vida, não podendo enxergar a dura realidade sofrida e repetida na fase adulta, não podendo romper o véu que os protegem de uma vida construída nas da ilusão.
Mas por que a vítima não interrompe esse ciclo fantasioso e irreal? 
Vou destacar dois pontos aqui, mas é preciso considerar cada caso na sua singularidade para não generalizarmos. 
Segundo a neurociência, o sistema límbico que tem a função psíquica de avaliar afetivamente as circunstâncias da vida, realizar a integração dos sistemas nervoso, endócrino e imunológico e organizar uma reação adequada, pode ser capturado por reações adversas ocasionadas pelas amigdalas. Em humanos e animais a amígdala está ligada a respostas ao medo e também ao prazer. A qualidade da avaliação afetiva depende da experiência vivida e do contexto sociocultural. Ou seja, nosso cérebro está programado para assegurar nossa integridade como um todo. Diante de vivências traumáticas o cérbero vai atuar como um protetor das emoções dolorosas e aniquiladoras. Tanto que o relato de vítimas que sofrem violência física e psicológica mostra que logo após a agressão sofrida, por efeito adrenérgico, a vítima não sente dor física. Horas depois, diminuindo a adrenalina, a vítima começa a sentir todos os efeitos colaterais da agressão .
O segundo aspecto é que toda a nossa psiqué está organizada para preservar as figuras parentais primárias, para assegurar o vínculo que é fundante e estruturante no desenvolvimento psíquico e suas funções. É o alicerce da nossa casa, do nosso edifício e a nossa edificação. Para as vítimas o terror não é a agressão propriamente sofrida, mas a possibilidade de perder o vínculo. Na fase adulta, se este conflito não estiver elaborado dentro da percepção da capacidade de cuidar bem da criança interna, o adulto vai escolher (inconscientemente e incondicionalmente) outra pessoa com perfil abusador para repetir a mesma dinâmica infantil até tornar consciente e estruturar um novo modus-operandi que irá assegurar todos os cuidados e a nutrição afetiva para que consiga aprender a se relacionar de modo saudável consigo mesmo. Só então conseguirá libertar-se de um passado de horrores e violência contra sua criança.
Para mantermos relações saudáveis na vida adulta é necessário aprendermos a cuidar bem da nossa própria criança. E esse aprendizado é possível através da psicoterapia ou da análise propriamente dita, onde o analista ou o psicoterapeuta irá ajudar o cliente nesta importante tarefa de libertação.

Dica de filme que ilustra esse tema: Gênio Indomável.
 

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