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LUTO EM VIDA

18/10/2022

A maior parte das pessoas, ao ouvir falar em luto, imagina logo que esse processo ocorre diante da morte de um ente querido ou da perda de alguém muito significativo na vida da pessoa enlutada. Entretanto, neste artigo, vamos tratar do “luto em vida”. Ou seja, quando nos despedimos aos poucos dos nossos afetos significativos, seja pelo adoecimento crônico, por doenças terminais ou por impedimento de qualquer outra origem que limita o vínculo. Um exemplo clássico de luto em vida diz respeito aos filhos de pais portadores do Mal de Alzheimer. Na evolução da doença é esperado que os pais deixem de reconhecer seus filhos, que percam parcialmente ou completamente a memória sobre sua própria história em família. O Alzheimer abrevia a vida interativa entre pais, filhos, netos. Podemos dizer que o Alzheimer é uma morte em conta-gotas. Meus pais têm Alzheimer, diagnosticados há mais de dez anos e atualmente estão numa Clínica Especializada para os cuidados multidisciplinares de que necessitam, o que chamamos de ILP (Instituição de Longa Permanência). Ainda nos reconhecem. Porém, a memória falha. Por vezes sou a sogra do meu pai, a cunhada, a tia e, muitas vezes, a filha Patrícia.

Elisabeth Kubler-Ross, psiquiatra que publicou alguns livros sobre esse tema, dentre eles o famoso “Sobre A Morte e o Morrer”, concluiu sua pesquisa sobre o luto apresentando os cinco estágios pelos quais passamos para elaborar (acomodar) internamente a perda sofrida. São eles:

· Primeiro estágio: negação e isolamento. ...

· Segundo estágio: raiva. ...

· Terceiro estágio: barganha. ...

· Quarto estágio: depressão. ...

· Quinto estágio: aceitação.

Vivenciamos esses estágios de forma singular e não necessariamente nesta mesma ordem. Mas todos nós experimentamos o luto pela perda. Aliás, você que conseguiu ler esse texto até aqui deve estar sendo bastante corajoso, pois falar sobre morte não é fácil para ninguém. A maioria das pessoas se esquiva quando o tema é esse: a morte de quem amamos, a morte de quem um dia admiramos, a morte de afetos que nos foram caros do ponto de vista psicológico e emocional.

Mas se você chegou até aqui! Então, inspira, conta até 10 e expira lentamente. Faça isso umas 3 vezes e depois coloca um copo d’agua ou um chá ao lado dessa leitura porque a viagem será com algumas turbulências, alguns sustos e decepções, mas posso lhe assegurar que o destino será libertador.

Agora vamos falar do luto de pessoas vivas que não apresentam nenhuma deterioração psíquica, neurológica ou qualquer comprometimento cognitivo que pudesse limitar a saúde do vínculo estabelecido. Pessoas que durante um tempo admirávamos e amávamos. Pessoas nas quais confiamos nossos segredos, nossas conquistas e fracassos, nossos amores e nossas desilusões. Pessoas com as quais também fomos esteio, amparo, ouvido, amigo-irmão, afago, presença efetiva em momentos de angústia ou de dor. Me refiro aqui as pessoas que nos são caras porque podem ter testemunhado uma vida quase inteirinha no mesmo contexto familiar. Essas e outras pessoas, as quais possuem uma significativa representação na nossa vida emocional, que podem ter cometido abusos, entre outras agressões e transgressões, são essas pessoas que muitas vezes não nos deixam nenhuma outra opção de escolha, a não ser fazermos o luto da relação. É exatamente aí que entramos em luto. E assim entramos na primeira fase do luto: a negação. Num primeiro momento podemos negar os abusos (emocionais e outros), as perversidades, as manipulações, as personalidades antissociais, a inversão da ordem dos fatos e da verdade. Negamos as perversidades porque esses vínculos são caros em nossa vida psíquica e afetiva. Foram importantes na nossa luta pela sobrevivência. Vamos recordar que nascemos completamente dependentes de um grupo familiar! Podem ser irmãos, tios, avós, pais, entre outros. A boa notícia é: é possível fazer o luto e interromper o processo de abusos e mágoas recorrentes. É possível enterrar simbolicamente os abusadores e se despedir deles e nunca mais voltar às cenas do “holocausto emocional”. Felizmente é possível e necessário fazer o luto de pessoas vivas, sem culpa, sem arrependimentos. É trabalhoso elaborar um luto assim, mas é necessário pela preservação da integridade física e psíquica de quem sofre abusos constantes. E para quem tem uma boa estrutura psíquica e um ego maduro capaz de salvaguardar sua própria saúde mental, eu posso falar com propriedade sobre esse tema, tanto como psicóloga quanto como alguém que elabora o luto de uma família inteira: existe vida em abundância quando rompemos o véu das idealizações e encaramos a realidade como ela é. Pais com Alzheimer nos levam a exercitar as fases do luto, os estágios do luto, mas outras pessoas, as que se mostram nocivas à nossa integridade, também podemos escolher o luto. Quando chegamos nos 50 anos de vida, algo muito interessante acontece conosco. Tenho 51 anos e o luto começou aos 50. O luto do corpo jovem, do primeiro tempo de vida, o luto dos pais com Alzheimer, e o luto por opção e por escolha de uma família que fazia parte das minhas relações e vínculos em grau de parentesco próximo. Isso significa passar pelo luto do corpo egoico infantil que sempre apostou numa relação fraternal saudável e construtiva. A criança que buscava a referência de um adulto saudável, que apostava no amor, na atenção, na amizade e na lealdade. Essa criança continua existindo dentro de mim, mas quando ela aparece, eu pego na sua mão e mostro novamente o “mulherão” que ela se tornou. A mulher autônoma, independente, cheia de vida e de amor para compartilhar com seus afetos, os afetos escolhidos, estes que são de fato vínculos seguros, afetos de ego adulto e maduro.

Assim a gente vai vivenciando o luto, passamos da fase da negação para a fase da raiva, da frustração, da decepção. É quando, de alguma forma, desejamos mudar a fantasia vivida na infância e na adolescência, passando por vários estágios de luto até chegarmos no estágio da depressão. Na depressão encaramos a realidade: a impossibilidade de ressuscitar o defunto (risos). O vínculo morreu, foi esmigalhado. Não há como colar os pedacinhos estraçalhados. Por hora, às vezes para a vida toda, não há reconciliação. É hora de chorar, de sentir a perda até conseguir ultrapassar essa fase e chegar na fase da ACEITAÇÃO.

A aceitação é a fase final da elaboração do luto. É quando não sentimos mais raiva, nem tristeza. É quando aceitamos a impossibilidade de contato ou convivência com o vínculo interrompido. E isto nos traz paz e sossego. Este é o destino!

Lembram do convite que eu fiz para um voo com turbulências? Pois bem! Aterrissamos em terra firme e salvos! Chegamos ao nosso destino: à elaboração final do luto do vínculo que um dia imaginamos ser confiável e seguro. Estamos agora, a salvos, na nossa companhia e na companhia de quem escolhemos conscientemente para fazer parte da nossa vida.

Palmas para essa linda aterrissagem!

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