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Dos prazeres e desafios de viajar sozinho

02/09/2020

É inegável que para viajar sozinho é necessário ter um espírito aventureiro, um espírito desbravador. É necessário ser um buscador.

Pessoas que possuem um perfil conservador (termo empregado aqui com vistas a um padrão mental que objetiva essencialmente o controle de resultados) podem se sentir muito inseguras diante da imprevisibilidade que faz parte da vida. Uma mudança de rota inesperada ou alterações rápidas de planejamento podem fazer parte do percurso.

Viajar sozinho implica em total liberdade e autonomia. A começar pela escolha do destino. Você precisa escolher o seu destino e para isso todas as outras inúmeras opções precisam ser refutadas. Somente neste item você faz um importante exercício de autonomia.

Todas as nossas escolhas possuem uma parte inconsciente, que é feita por necessidades ainda não identificadas. O prazer de viajar sozinho também propicia essas (re)descobertas. Pelo caminho você vai descobrindo porque escolheu tal destino, porque está fazendo essa rota e qual o sentido da sua escolha. O caminho vai ficando interessante, cada vez mais interessante, motivações inconscientes começam a surgir, desejos, anseios, tudo vai clareando e você passa a ter um encontro com você mesmo.

É muito fácil nos desconectarmos da nossa essência, do nosso caráter irremediavelmente humano.

Comete-se uma gafe, responsabiliza-se por ela. Se precisa de ajuda porque algum imprevisto ocorreu, você logo busca e mostra sua vulnerabilidade. Se você se perde na estrada, vai precisar redescobrir sua rota. Aliás, o que se aprende muito nas viagens solitárias é que realmente nunca se está só. Estamos cercados de humanos que podem nos ajudar ou simplesmente compartilhar suas experiências conosco e vice-versa. Há uma comunhão, uma conexão que se dá sem interesses secundários.

Aprendemos, ao viajar sozinhos, que solidão é uma ilusão. Nem se quiséssemos estar completamente sós, assim conseguiríamos. É impossível estar ou ficar sozinho neste mundo. A sensação de solidão está dentro de você e não fora. Mesmo na companhia que possa te cercar, se você sente essa solidão, alguma coisa não está bem dentro de você. O vazio que sente não tem nada a ver com o outro ou o exterior. Tem relação exclusivamente com você.

Eu AMO viajar sozinha. Gosto muito também de viajar com meus afetos, mas viajar sozinha tem um gosto diferente. É pura magia. É uma entrega total que faço. É o retorno para a minha casa, para o lar que existe dentro de mim. Preciso apenas me atender, me acolher, me mimar, me amparar, me ajudar, cuidar bem de mim.

Outro grande aprendizado é este: “Cuidar bem de você!”.

Geralmente esperamos isso do outro. E quando o outro não pode realizar esta tarefa, ficamos tristes, chateados, amargurados. Como se esta tarefa fosse realmente da responsabilidade do outro. Não é! É nossa tarefa cuidar bem de nós mesmos e compartilhar nossas experiências com o outro. A entreajuda é primordial, é a ferramenta principal para o nosso aprendizado, mas não podemos esquecer da nossa autonomia. Aprendemos com os outros. Não devemos depender exclusivamente do cuidado dos outros, a não ser em casos em que a nossa autonomia estiver diminuída por razões da impossibilidade de agirmos sozinhos. Quando não preservamos nossa autonomia e a capacidade de gerir nossas necessidades, geralmente enfraquecemos e reduzimos nossa autoestima. Perdemos o amor-próprio. Perdemos a chance de experimentar o prazer das nossas conquistas e desta conexão maravilhosa que é acessarmos nossa essência.

Ter espírito de buscador é necessário para viajar sozinho. O buscador tem interesse genuíno pela vida, pelo mundo, por tudo que está dentro e fora dele. Você tem de querer mais do que estar dentro da “caixa”, dentro dos moldes que o sistema impõe. Ouvi de uma pessoa muito bacana que encontrei na Praia do Rosa, que nós somos o “óleo desta grande engrenagem chamada sistema”. Triste realidade. Às vezes precisamos deixar de lubrificar as outras engrenagens para cuidar da nossa.

O espírito buscador é aquele espírito permanentemente inquieto, ele não se acomoda, ao contrário, se incomoda! Quer saber mais e mais sobre você, quer testar seus limites, quer saber o que você guardou na caixa preta do seu inconsciente, quer abrir a caixa preta, quer que você experimente novas emoções e, acima de tudo, quer que você encontre a sua paz sem precisar se sujeitar ou se submeter. Este espírito buscador é retratado na frase de Santo Agostinho:

"Existe alguém dentro de mim que é mais eu do que eu mesmo".

Viajar sozinho é viajar na sua companhia. Se você for uma boa companhia para você, assim o será para os outros.

De tudo, fica cada vez mais presente para mim a percepção que somos feitos desta mesma matéria, mas somos muito mais do que isto. Em essência somos o que sentimos, o que desejamos e a soma das nossas experiências vividas.

Feliz vida real, feliz descobertas e redescobertas!

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