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Carência em tempos de distanciamento social

14/08/2020

Quando observo a natureza e as suas várias formas de existência, percebo quanto nos distanciamos de nós mesmos.

Por inúmeras contradições, tornamo-nos “irracionais”, seres que pensam muito e sentem pouco. Esquecemos que a nossa ancestralidade contém a sabedoria de que precisamos. Esquecemos, por exemplo, que a sensação de plenitude, de preenchimento interno e de paz está dentro de nós, em nossa própria natureza humana.

Apesar dos inúmeros desafios que enfrentamos em nossa caminhada, existe essa pulsão de vida que luta permanentemente pela sua existência.

Estamos em plena Pandemia! O Covid-19, o novo coronavírus, veio para sacudir nossas pseudo-certezas. Parece que a natureza deu um jeito de nos sabatinar! Estamos lutando, como nunca, para sobrevivermos. E isto me faz refletir sobre a resistência da vida e sua pulsão.

Às vezes observo um terreno rochoso, arenoso, e me surpreendo ao encontrar alguns ramos de vida e até mesmo alguma flor em meio ao contraste que denuncia a aspereza do ambiente. Nós somos assim. Mas esquecemos disso porque nos esquecemos das nossas origens, de onde viemos e para onde iremos voltar.

Quando observo o tempo de vida das plantas e dos animais e vejo essa maravilha que é a natureza se renovando e tentando de todas as maneiras sobreviver em meio aos ataques que fizemos ao ambiente, logo imagino a criança que um dia existiu e que ainda habita este corpo através de suas memórias afetivas. A criança que um dia também se sentiu extremamente frágil e dependente de seus progenitores e cuidadores. A criança que se sentiu indefesa às projeções destes. A criança que se sentiu negligenciada, abandonada ou maltratada, mas que de toda forma lutou pela sua sobrevivência, assim como a natureza nos mostra sua luta diária contra os nossos ataques.

Há uma espécie de desabafo em todos os livros da psicanalista Alice Miller. Confessando sentir-se ameaçada em vários momentos de sua infância, ela transformou as suas experiências traumáticas e dolorosas em conhecimento e ajuda mútua. Ao ler alguns de seus escritos, resgatei o que há de mais nobre em nossa existência: somos semelhantes e sentimos muitas coisas parecidas. Estamos unidos pela nossa “espécie”, pela nossa natureza e habitat.

Os grandes pensadores, pesquisadores e estudiosos, são seres humanos comuns! São nossos iguais, nossos pares. Tem a nossa morfologia. O que às vezes nos distingue deles é a sensibilidade com que expressam em palavras as nossas experiências e vivências neste vasto campo das subjetividades humanas.

Existem também as “testemunhas esclarecidas”, formadas por suas histórias de vida e suas construções-superações, capazes de reconhecer a outra alma humana, tão profundamente quanto a si mesma. Assim é a psicanalista Alice Miller e tantos outros psicoterapeutas, médicos, escritores e pessoas do nosso dia a dia, pessoas que compõem o nosso cotidiano. Assim é Elisabeth Kubler-Ross, psiquiatra e escritora de livros que testemunham a nossa existência. Cito alguns: Sobre a Morte e o Morrer e a Roda da Vida. Assim é Elisabeth Gilbert, que numa viagem de autoconhecimento descobriu-se tão profundamente humana que foi capaz de amar verdadeiramente.

Ou seja, viemos do mesmo lugar e voltaremos para o mesmo lugar. Somos compostos da mesma matéria e todos nós voltaremos ao pó. O cerimonial ou ritual de passagem poderá ser diferente, mas todos nós estaremos unidos num único propósito: morrer. Sim, morrer. Porque ninguém vive eternamente, não neste planetinha chamado Terra.

Mas enquanto a morte não vem, para mostrar-me quem sou eu em meio a esse universo infinito, continuarei me perguntando:

Quem sou eu?

Eu às vezes não entendo!
As pessoas têm um jeito
De falar de todo mundo
Que não deve ser direito.

Aí eu fico pensando
Que isso não está bem.
As pessoas são quem são,
Ou são o que elas têm?

Eu queria que comigo
Fosse tudo diferente.
Se alguém pensasse em mim,
Soubesse que eu sou gente.

Falasse do que eu penso,
Lembrasse do que eu falo,
Pensasse no que eu faço
Soubesse por que me calo!

Porque eu não sou o que visto.
Eu sou do jeito que estou!
Não sou também o que eu tenho.
Eu sou mesmo quem eu sou!

Talvez, Pedro Bandeira, escritor brasileiro de livros infanto juvenis, conseguisse traduzir um pouco de nossas angústias existenciais.

Então, ao lidar com minhas carências, penso: trato de me acolher e acolher todos os sentimentos, emoções e pensamentos que fazem parte da minha experiência de vida. Sei que sou muito mais do que eu tenho e até mesmo do que sinto. Mas também sei que esse holl de emoções e pensamentos servem como uma lanterna e uma bússola para guiar-me na minha direção, na direção deste encontro que pode ser tão satisfatório que me permita estar em paz comigo, independentemente da situação que eu me encontre.

A maior riqueza na vida talvez seja a nossa rebeldia anárquica, quando vamos na contramão de qualquer situação e abraçamos até mesmo a nossa própria morte com um sorriso maroto nos lábios, de quem se rebelou em vida e fez de sua vida algo que valesse muito a pena viver, sem apegos ou distrações.

O que eu desejo a todos que me leem: uma boa vida em vida, pois a morte só vem para nos colocarmos a prova para testemunharmos nossa existência.

Feliz vida a todos!

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