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Black Friday das Emoções

05/12/2021

Não recordo dos últimos anos terem sido tão incisivos quanto a oferta de produtos e serviços em época natalina. O famoso “Black Friday” e a correria quase insana para adquirir bens de consumo e outros tantos serviços. Sabemos que a pandemia da Covid-19 e suas variantes trouxe importante dificuldade na economia e muitas pessoas precisaram se “reinventar” ou migrar para atividades laborais que pudessem assegurar minimamente seu sustento. Tanta oferta acaba por deflagrar a carência do mercado, a carência promovida pela privação vivenciada.

Quero me deter a dois aspectos para esta reflexão:

1. A privação sofrida na pandemia e suas consequências.

2. O consumismo desenfreado e as compulsões por compras.

Vamos falar sobre a primeira: passamos quase dois anos nos restringindo ao ambiente que deveria ser o mais seguro: nosso lar. Digo, “deveria ser o mais seguro” por conta dos movimentos negacionistas, os anti-vacinas, que colocavam em risco até mesmo quem decidiu permanecer em casa para se proteger. E por conta da restrição do contato humano em diversas atividades precisamos desenvolver uma capacidade ainda maior de resiliência, de tolerância à falta, e ainda lidar com nossos medos e a incerteza de um futuro promissor. Ao mesmo tempo tivemos de lidar com a morte de familiares, amigos, conhecidos, de gente como a gente. Um luto interminável. E ainda vamos passar por longos períodos de elaboração de todas as perdas, seja pela despedida dos nossos afetos e de nossos pares, semelhantes, seja pela perda financeira, de trabalho ou qualquer outra situação que nos obriga a encarar as nossas vulnerabilidades. Todas essas perdas e privações sofridas, somadas a uma batalha diária pela nossa própria sobrevivência, acabou por acionar a raiz da maior fragilidade emocional que experimentamos: o trauma do nascimento. Sim, nascemos e já experimentamos o primeiro trauma. Segundo Otto Rank, psicanalista contemporâneo de Freud, esta primeira experiência traumática que sofremos pela separação do útero materno nos coloca de cara diante de uma realidade repleta de riscos à nossa integridade como um todo. Na pandemia nossa psique despertou esses medos, arcaicos e primitivos, mas com um agravante: a ameaça constante de um inimigo invisível. E quando estamos sob ameaça, todas as luzes internas do nosso porão chamado inconsciente se acendem e se interligam instantaneamente. Reeditamos nossos traumas. Nossos medos e a nossa vulnerabilidade ficam tremendamente ativados. Nos tornamos vigilantes e defensivos. E era preciso. Ainda é necessário mantermos a vigilância sobre os cuidados preventivos contra mais uma mutação deste terrível vírus: a variante ômicron. Entretanto, mais adaptados a esta realidade e munidos com alguns dispositivos que nos oferecem ao menos uma certa segurança, podemos distencionar nossas defesas psicológicas. Podemos diluir um pouco tais defesas para ganhar mais fôlego e prosseguir nessa “terra incerta”.

Essa pequena introdução serve para pensarmos agora as consequências das privações sofridas nesta pandemia:

A segunda parte da reflexão mostra que toda privação resulta numa compensação. A Black Friday é uma porta que se abre para um consumo exagerado. Afinal, do que exatamente precisamos? Todas essas “portas mágicas” que apresentam produtos com descontos atraentes podem ativar em nós os mecanismos compensadores. Muitas pessoas que não exercitam essa consciência sobre suas reais necessidades podem se ver em maus lençóis quando a fatura do cartão de crédito bater a sua porta. E se tivermos uma tendência ou um transtorno compulsivo ainda não identificado e tratado, aí sim! Prato cheio para a Black Friday. O problema é que o remendo não conserta o buraco afetivo. Essas compensações não compensam. Apenas mascaram o conflito. Servem como um anestésico. Portanto, antes de iniciar uma compra, principalmente virtual, faça algumas perguntas para si mesmo:

1. Eu realmente preciso deste produto ou serviço?

2. Se não adquirir, conseguirei viver sem ele?

3. Este produto ou serviço é imprescindível na minha vida?

4. Afinal, de qual necessidade eu estou falando? Qual a minha carência?

5. O que eu busco com esse produto ou serviço?

6. Se adquirir, fará significativa mudança na minha vida?

7. Se não adquirir, posso desenvolver minha criatividade para explorar meus próprios recursos?

A compulsão por compras ou o consumismo desenfreado sempre deflagram uma falta no campo afetivo-emocional. É sempre uma tentativa de saciar a fome, o desejo, um anseio que geralmente não está na matéria e, sim, no campo da subjetividade humana.

Espero que esta reflexão sirva para a descoberta dos nossos reais desejos, motivações, necessidades psicológicas, bem como a descoberta do que nos aflige e do que tentamos abafar deslocando o problema para objetos e inúmeras outras distrações.

Encarar nossos dilemas pessoais ao invés de tamponá-los ainda é a melhor aquisição que podemos fazer.

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