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Filhos do Acaso

27/06/2022

Recentemente o tema abordado na clínica psicológica onde atuo profissionalmente tem sido este: os “filhos do acaso”. De tempos em tempos percebo essa ressonância nas falas dos pacientes que atendo e esta mesma ressonância que aparece também na minha vida pessoal encontra eco para expressar-se através dos artigos que escrevo. Desta forma minha responsabilidade social se manifesta e pede que estes conteúdos sejam compartilhados para que outras pessoas possam se beneficiar com esta reflexão. Tudo que ecoa no meu setting de trabalho, ecoa em mim também, havendo conexão com o que é humano e o que existe em cada um de nós.

“Filhos do acaso” ou filhos concebidos aparentemente por um “acidente de percurso”, sem serem planejados ou desejados. Este é o tema deste artigo. Como os pais e a família já constituída lidam com esses “estranhos no ninho”? Uma questão polêmica que se insere aqui, neste contexto, é a decisão que alguns progenitores tomam na realização do aborto quando se permitem acolher a sua honestidade em relação aos próprios sentimentos. Quando não desejam o filho, mesmo que haja condição financeira para tê-lo, e decidem pelo aborto, decidem honrar o que verdadeiramente desejam. Qual o impacto desta decisão numa sociedade como a nossa, a qual ainda encara o aborto como uma ideia pecaminosa e/ou criminosa? Temos mais perguntas do que respostas porque são questões que merecem um olhar muito mais criterioso, respeitoso e consistente em relação à história de cada sistema familiar, de cada pessoa envolvida na trama.

Protegendo pacientes pelo anonimato, mas tendo a permissão para tecer sobre um “case” (alguns devem ter passado por experiência semelhante), proponho esta reflexão:

Quando um filho é concebido involuntariamente (ou sem a consciência dos pais sobre parte deste desejo) e os pais, contrariando seus sentimentos, sua vontade, optam em levar adiante a gestação, acabam por contrair um dilema que poderá se transformar em sentimento de ambiguidade, já que a verdade sobre a concepção teria sido negada.

Muitas vezes a permissão para que uma gestação ocorra contra o real desejo dos pais, principalmente da mãe, se dá por processos de repressão e recalcamento do afeto, do conteúdo emocional que permeia este momento. A ambiguidade de sentimentos será sentida pelo bebê. Desde pequeno perceberá esta contrariedade nas atitudes de seus pais e talvez na tristeza no olhar de sua mãe que não pode interromper sua gestação, não pode abortar a sua chegada à família, não porque não quisesse, mas porque não se sentia autorizada pela própria sociedade que ainda considera o aborto um crime. Ou porque não se sentia autorizada por conta das religiões e suas crenças.

Muitas famílias sofrem a consequência desta ambivalência de sentimentos por não procurar ajuda psicológica para acomodar melhor esta “escolha” que passou a ser de um modo inconsciente sustentada pelos pais.

Filhos do acaso podem se comportar como verdadeiros servidores para sua família na tentativa de conquistar o amor de seus pais, na tentativa de desfazer tal ambivalência de sentimentos (afinal, amor e ódio se complementam, mas não se afinam). Pode passar uma vida inteira a serviço das necessidades psicológicas de seus pais, a serviços de quaisquer expectativas que eles possam nutrir pelo seu filho (a), tudo isto para tamponar o sentimento de inadequação à família. Todo filho não desejado sente esta ambivalência de sentimentos e tenta se adaptar ao meio por conta da sua necessidade de sobrevivência.

Alice Miller, uma escritora e psicanalista renomada no assunto, descreve perfeitamente esta condição e fala num de seus livros sobre a liberação desta ambivalência pela veracidade dos fatos e pela honestidade de sentimentos. Ou seja, a “verdade liberta”, segundo Alice Miller. Ser honesto em relação à história da criança, aos seus sentimentos, pode ser muito libertador, tanto para os pais quanto para o filho. Ao contrário, superproteger o filho guardando este segredo pode ser tremendamente patológico para o vínculo familiar. Obviamente que falamos aqui de uma verdade a ser trabalhada de modo terapêutico sob o acompanhamento e a orientação de um profissional especializado para ajudar nesta reorganização familiar.

Muitas mães que tinham o desejo de seguir uma carreira profissional e a gravidez aparece exatamente neste momento e “interrompe” o curso natural de sua escolha, passam a se vitimizar por toda a vida, culpando o filho que interrompeu seu percurso, culpando o marido que talvez não aceitasse o aborto, culpando a si mesmo por não ter tido condições emocionais para sustentar os dois papéis, o de mãe e o de mulher realizada na carreira ou no seu trabalho, depois, e por fim, culpando a si mesmas pela própria ambivalência de sentimentos. Estas “vítimas de si mesmas” acabam adoecendo, no dito popular: somatizando.

O segredo que elas guardam sobre o desejo de não ter o filho, de ter pensado o aborto, não as livram de um afeto embotado ou reprimido. E este é o preço a pagar, pois a sociedade afirma que toda mãe DEVE amar seus filhos. Esse é o preço, a sentença a ser cumprida para toda vida.

Tornam-se vítimas de uma dívida afetiva contraída pelos seus equívocos na interpretação deste “cenário”. Pagam com a doença, com o sofrimento, tentam se purificar do pecado de ter pensado em abortar. Outras que conseguem realizar tal desejo podem morder a mesma isca de um superego aniquilador e continuar sofrendo por uma culpa imposta pela sociedade que julga e condena quem comete esta transgressão.

Mas qual seria a saída para este dilema? No caso das mulheres que contrariam o seu desejo e levam a ferro e fogo a gestação até o fim, que carregam seu filho (a) com uma dor enorme no peito por não se sentir em condições para cuidar, maternar, que consequências essa contrariedade poderia trazer à família? Algumas mães entram num quadro depressivo pelo desejo de morrerem para dar fim ao sacrifício que sentem em fazer algo que não tem preparo ou condição emocional para tanto. Algumas acreditam escapar desta tortura psíquica cometendo o suicídio ou “desenvolvendo” uma doença terminal.

Nestes casos o sofrimento torna-se inevitável. Este sofrimento não permeia apenas o vínculo mãe-filho (a) mas todo o sistema familiar sente que esta criança não é bem-vinda. Alguns vão se identificar com a rejeição e as formas de abandono e outros vão se identificar com a mãe que não desejou o filho. Um irmão mais velho, por exemplo. Sentindo o mal que a criança faz à mãe, vai se compadecer pela mãe e tornar-se um filho-parceiro no sentido de proteger a mãe desta dor e proteger a si mesmo da rejeição espiada. Forma-se aí uma aliança nessa relação dual onde o “filho do acaso” passará a amargar os movimentos de rechaço e de abandono provocados por esta díade.

São muitos os complicadores de uma verdade não revelada. Tendo a coragem de dizer para si mesma ou para si mesmo (no caso do pai) que não havia este desejo e que muitas vezes foi sofrido cuidar desta criança, poderíamos pensar num resgate deste vínculo por meio da transparência de sentimentos e uma nova maneira de se relacionar poderia ser a melhor saída, eu diria a mais honesta e salutar para todos.

Fica a reflexão.

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