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As nossas mortes de cada dia

29/07/2022

AS NOSSAS MORTES DE CADA DIA

“Tudo deve estar sendo o que é”

Clarice Lispector

Este é um dos capítulos do livro da Dra. Ana Cláudia Quintana Arantes. Em “A morte é um dia que vale a pena viver”, Ana destaca as perdas simbólicas e existenciais pelas quais todos nós passamos. A morte simbólica aqui se refere a tudo o que encerra um ciclo. É curioso como imaginamos as fases do luto acontecendo apenas quando nos despedimos na morte de um ente querido ou de alguém das nossas relações. Mas em verdade o luto é vivido em cada perda que experimentamos em vida e em cada contexto simbólico onde está inserida. Desde o encerramento de um ciclo de trabalho ou de relações sociais até a perda das conquistas que nos foram caras ao longo do investimento afetivo que realizamos. Ana diz que as perdas simbólicas podem ser mais dolorosas do que a morte real. Seguimos assim nossa trajetória vivendo cada etapa, cada momento, cada fase, cada ciclo da nossa existência como se fosse um ano escolar ou uma disciplina a ser cursada. Muitas vezes repetimos a experiência para concluirmos o aprendizado. A escola da vida nos mostra que nada é permanente, fixo ou eterno. Eis o desafio do desapego! Lembrei agora de um poema de Fernando Teixeira de Andrade que diz assim:

“Enquanto não atravessarmos a dor de nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades. Para viver a dois, antes, é necessário ser um. Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares”.

Afinal, que graça teria a vida se vivêssemos apenas repetindo as mesmas escolhas, as mesmas falas, as mesmas vivências, as mesmas roupas? A vida não é estanque e cada vez mais a mudança ocorre numa velocidade a qual não temos nenhum controle sobre o vento que bate nas velas do nosso barco. É preciso deixar ir... Meu pai sempre me dizia: “É preciso deixar o barco andar”. É preciso aprender a se despedir daquilo que já se concluiu. Agradecer, honrar o aprendizado e seguir para a próxima estação. Na vida não andamos para trás. Estamos sempre avançando de fases e quando concluímos uma parte da nossa viagem descemos na estação e pegamos em seguida o próximo trem para prosseguirmos em direção a nossa finitude. Cada estação é uma nova fase, uma nova aventura na nossa vida. Infelizmente não podemos carregar tudo o que encontramos pelo caminho. Mas podemos ser gratos a todos e a tudo que fez parte das nossas experiências. Assim é a vida. Cheia de começos, meio e fim. E as memórias afetivas são os nossos referenciais, pois testemunham a nossa existência.

Para alguns a morte é uma ilusão. Estamos sempre vivos de várias formas e morremos inúmeras vezes ao longo de várias existências.

Creio que a dificuldade que encontramos em não nos desapegarmos do que já encerrou esteja na insegurança originária do trauma inicial da grande aventura neste corpo físico. Quando nascemos e lutamos pela nossa vida dependendo dos cuidados dos nossos cuidadores, levamos algum tempo, às vezes uma vida inteirinha, para desapegarmos das figuras tão importantes para nossa sobrevivência. Ou seja, levamos algum tempo para nos reconhecermos em um corpo adulto capaz de prover a própria subsistência. Podemos levar, em nossa bagagem emocional, certa imaturidade que nos coloca em situações de risco, em situações de sofrimento e em elações abusivas. Porque essa parte, ainda não evoluída ou amadurecida, leva a pessoa a estabelecer relações de dependência com o outro. É quando a pessoa busca o reconhecimento e a validação dos outros. Seja nas relações sociais, afetivas ou até mesmo em seitas, religiões e outras tradições.

No fanatismo encontramos essa relação, onde a dominação-submissão é dada como um grande exemplo de honra, entrega e “livramentos”. Existe aí um “deus” que salva, que cura, que ampara a criança no corpo adulto. Esta é uma questão que não precisa ser polemizada e não é o caso aqui, pois entendo que os recursos espirituais, se bem utilizados, podem auxiliar exatamente na observância do corpo emocional adulto e das trocas de fases e encerramentos de ciclos. Podem ajudar a reconhecer nossa autonomia, nossa independência emocional, nossa capacidade de se despedir até mesmo de quem tanto amamos.

Enfim, o artigo que escrevo diz respeito ao desapego. Passamos muito tempo buscando coisas, pessoas, aprendizados, dinheiro, matéria, carreira, sucesso, fama, corpo perfeito, etc., para aos poucos nos despedirmos de todas elas. O importante é tornar consciente a impermanência de tudo e a transitoriedade durante a nossa vida. Deixar ir, se despedir para iniciar novas aventuras é sempre um desafio pessoal, mas é sempre uma aventura maravilhosa que enriquece nossa viagem pela vida a fora. Isso me fez lembrar o livro "A Parte Que Falta", de Shel Silverstein. Um clássico da literatura infantil relançado pela Companhia das Letrinhas. O protagonista desta história é um ser circular que visivelmente não está completo: falta-lhe uma parte. E ele acredita que existe pelo mundo uma forma que vai completá-lo perfeitamente e que, quando estiver completo, vai se sentir feliz de vez. Então ele parte animado em uma jornada em busca de sua parte que falta. Mas, ao explorar o mundo, talvez perceba que a verdadeira felicidade não está no outro, mas dentro de nós mesmos.

A vida é uma grande aventura e nós somos os protagonistas dessa história!

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