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A desconfortável arte de silenciar

26/07/2020

Vivemos tempos desafiadores na arte de se relacionar. A pandemia do Covid-19 potencializou os movimentos sociais já existentes que deflagravam a necessidade de revisão urgente de comportamentos tóxicos, os quais estavam sendo adotados através da polarização de ideias, crenças e concepções de mundo. E o que trazíamos em nossa bagagem afetiva, cultural e social, acabou desembocando neste surto viral. O medo do desconhecido e as incertezas em relação a falta completa de domínio do novo coronavírus fez com que nossas defesas fossem acionadas a 360 graus. Fomos tomados inicialmente pelo medo quase incontrolável ao nos depararmos com a possibilidade de perdas de toda ordem. Aos poucos fomos assimilando essa nova realidade e tentando nos adaptar em meio a inúmeras crises que foram sendo expurgadas a partir da Pandemia. Crise sanitária, crise política, crise econômica, crise social. O que não nos falta são crises neste cenário mundial. No caos coletivo quero destacar dois movimentos que foram sendo apresentados: um que sinaliza a importância de silenciar, voltar-se para dentro, recolher-se. Além dos cuidados de prevenção ao Covid-19 que exigem nosso afastamento social, tal movimento indica um caminho de autorreflexão, autoanálise, para encontrar em si mesmo os recursos necessários no enfrentamento desta realidade. Outro movimento foi surgindo em seguida e através das redes sociais: de repente uma explosão de lives (apresentação de vídeos ao vivo). Os posts de facebook foram sendo substituídos pelas lives no Instagram. Ficávamos atordoados na hora de escolher uma live para participar, pois elas competiam entre si nos horários nobres da internet causando congestionamento nas redes. Movimento, este, que mostrava explicitamente a premente necessidade de fala, a qual remete à busca incessante pelo equilíbrio perdido. O ego e suas defesas sempre irão lutar pela preservação da nossa espécie. É a sua principal função. Todos nós usamos, em algum momento da nossa vida, personagens criados por nossas próprias defesas psicológicas. Isto me lembra a fábula do “Cavaleiro Preso na Armadura”, de Robert Fisher, quando o Cavaleiro (personagem) lutava para salvar seu reino mesmo que muitos não pedissem seu auxílio. Foi por meio desse personagem que o sujeito habitante da armadura começou a perder o ar, a literalmente não conseguir mais respirar, algo semelhante com um dos efeitos nocivos do Covid-19, quando a pessoa perde consideravelmente a capacidade de respirar. Então, na pandemia, vestimos o nosso personagem antigo, aquele usado nas lutas individuais por nossa própria sobrevivência emocional. E disparamos lives e mais lives. E infinitas propostas de conexão. Montamos nossa trincheira no modo “home office” e partimos mais uma vez para a luta. A iminência da morte ligou todos os nossos botões internos e trouxe à tona o que construímos como sujeitos até aqui. Tanto nossas virtudes quanto nossas sombras estão sendo expostas, não há como maquiá-las. A desconfortável arte de silenciar diz respeito a nossa parte mais frágil e vulnerável: nossa condição humana. Não somos seres imortais, embora vivêssemos com essa sensação até mesmo para suportar a mortalidade. Agora não temos mais a ideia de futuro, a possibilidade de planejarmos nossas ações a médio e longo prazo. Não sabemos nem mesmo o que o dia nos reserva. Vivemos a impermanência de tudo, incluindo a impermanência da própria vida. Silenciar tem sido um dos grandes desafios nesta Era Pandêmica. Parece que as redes sociais se tornaram microfones e megafones onde gritamos e pedimos ajuda, mesmo mascarando a necessidade. Muitas lives apenas mostrando um desfile de egos envaidecidos que mais tratam de se autopromover do que levar efetivamente informações relevantes para uma força-tarefa no coletivo, revelando o desespero das pessoas, o medo maquiado, o medo de perder o que tinham como falsa segurança pessoal, o medo de perderem suas armaduras e ficarem despidos frente à criança interna amedrontada sem saber o que fazer com ela. Muitos não admitem um comentário ou crítica a respeito de qualquer conteúdo ou comportamento apresentado nas lives, pois produziria uma marca na sua armadura inquebrantável. É preciso continuar lustrando a armadura para que ao se assistir e ao ler somente os elogios recebidos possa então confirmar que se está no caminho certo e seguro para a superação desse momento de maior enfrentamento. Ledo engano. Assim nos tornamos compulsivos. Compulsivos por trabalho online, compulsivos na ingestão de bebidas alcoólicas, drogas e comida tóxica. A pandemia mostrou nosso desequilíbrio individual e coletivo, reflexo do que promovemos na “Mãe Natureza”, um desequilíbrio bioenergético. Qual a saída para esse caos que promovemos na coletividade? Talvez seja aprender a grande lição que o Covid-19 está nos proporcionando: resgatar as coisas mais simples da vida, tornando-a significativa a ponto de valer cada segundo da nossa existência. Como bem disse Mário Sérgio Cortella: “Não é a morte que me importa, porque ela é um fato. O que me importa é o que eu faço da minha vida enquanto minha morte não acontece, para que essa vida não seja banal, superficial, fútil, pequena”. Eu ainda acrescentaria: para que ela seja usufruída em toda sua beleza. Como dizia Rubem Alves: “a vida não pode ser economizada para amanhã”.

Além dessas ideias também proponho o que estou fazendo diariamente através do aprendizado constante que tenho com os meus amigos-afetos: selecionar informações, conteúdos, redes sociais, pessoas tóxicas e tudo o que não acrescenta significativamente ao despertar de uma consciência que possa transformar essa realidade adoecida em uma vida pautada na preservação do nosso planeta, a começar pela preservação da nossa saúde física, mental e espiritual.

Desejo a todos uma ótima Vida enquanto ela existir, apesar e a partir de todos os seus enfrentamentos!

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